"Existem Venenos Tão sutis que, para conhecer-lhes as propriedades, temos que nos expor ás doenças que causam."

Oscar Wild.

06 novembro 2010

Inocência




Via o sangue brotar do pequeno machucado no dedo, sentiu-se atônita, como se a pequena gotícula vermelha fosse na verdade um mar descontrolado e selvagem que brotava de seu corpo, olhava com um pavor desumano estampado na face o pequeno corte que fizera com a tesoura enquanto picotava papel.


Não ousou derramar uma lagrima sequer, continha o choro e o enjaulava como o animal selvagem que ele se mostrava, não sentia dor nenhuma, a não ser a da surpresa intolerante diante de seus olhos.

Sua mãe cantarolava sozinha na cozinha, ainda era capaz de ouvir os carros com seus motores barulhentos do lado de fora da janela, ouvia até mesmo o barulho suave que seu gato fazia ao dormir, eram os mesmos sons que sempre foram, tudo continuava intacto, menos ela, o pequenino corte praticamente se tornara invisível, nem mesmo conseguia distinguir sua forma, mas sabia que ele estava ali.

A tevê ligada começou a ressoar a entrada de seu programa favorito, lá existiam super heróis e super heroínas que salvavam o mundo de vilões com as caras feias e extraterrestres gosmentos, nunca viu, em um episodio se quer, os heróis se darem mal, pois era obvio que o bem sempre vencia o mal.

Ela era uma super heroína, havia colocado até mesmo sua pequena capa naquele dia e cortava bonequinhos de papel para serem as vitimas do malvado Doutor Rato, o mais temível da face da terra, não tinha muitos amigos, não saia quase de casa, mas tinha suas bonecas e seus cadernos que picotava com uma agilidade e uma coordenação de mestre.

Ela era uma super heroína, até o memento em que viu seu pequeno corte sangrar, sempre fora tão cuidadosa que sua pequena lembrança de 6 anos não se lembrava de ter visto sangue saindo de seu corpo, ela era uma heroína.

Mas agora havia se tornando apenas mais um de seus pequenos bonecos de papel, humanamente frágil.



03 novembro 2010

Umbral.




Refiz todos meus passos, andava de costas em alamedas povoadas por fantasmas que habitavam o mesmo espaço, porem não o mesmo tempo, cada um englobado em sua própria esfera atemporal corria e amassava com seus pés descalços tantas historias de amor que por lá já se fixaram e apodreceram caindo por terra e se emudecendo nos olhos de seus donos que lhe abandonavam as pisadelas daqueles que agora nada sentiam pelos amores fugazes deixados a esmo nas calçadas.

Cada músculo de meu corpo impulsionava toda minha massa no sentindo contrario ao convencional, repensava cada faísca de sanidade que havia ocorrido nas inúmeras sinapses de meu cérebro, respirava o gás carbônico de um dia fora oxigênio em meus pulmões, dizia as palavras de trás para frente, revia o mesmo filme de sempre rebobinado por meus olhos.

Reentrei no ventre de minha mãe, voltei a ser aquele pobre amontoado de células inúteis, me tornei nada.

Tornei-me enfim um dos fantasmas que sobreviviam à custa de suas azucrinações aos amores mortos, andando novamente no sentido convencional, vi aqueles a quem amei um dia, vi os moldes de onde minha antiga forma tinha sido moldada, ambos passaram pela sombra que me tornara, em seus sentidos opostos, seus olhares sequer se cruzaram, jamais seriam um modelo pré- fabricado de família que um dia cairia em ruínas deixando como réstia algumas magoas e alguns milhares de contrastes, os corações jamais bateriam em uníssono entregando uma felicidade que um dia existira lá, escondida atrás de dividas e falsas ascensões sociais.

Sorri ao formatar que cada um seguiria rumos completamente diferentes dos quais conhecia, ela talvez terminasse a faculdade e se tornasse enfim psicóloga, casaria com um homem simples, de sonhos pequenos, pois necessitava de amor, cada gesto de seu ser entregava esse vicio que corrompia sua alma, talvez continuasse a fumar e morresse aos 65 anos, após ter dois filhos e alguns netos que veria correndo no jardim nos domingos a tarde.

Ele jamais se casaria sempre fora prepotente desde os tempos de menino em que se viu responsável por uma família que nunca fora sua desde os tempos em que vira seu pai dando as costas aquela frágil concepção de felicidade que ele construía com sua mentalidade de menino, a que conhecia e parecia mais lógica como única nos seus cinco anos, nunca teria um décimo do que teve ao lado dela, mas perseguiria a vida toda o sucesso, como único objetivo, único sonho, morreria com uma idade mais avançada, não bebia em demasiado, e também raramente fumava, não gozava muito dos prazeres da vida, porem os cansaços do trabalho acabariam a lhe tornar senil.

Enfim o sorriso se apagou e continuei minha caminhada infinita, mas não sem antes olhar para baixo e ver na lama azeda que se infiltrava sobre os meus pés aquele amor tão frágil que jamais existiria que jamais se tornaria ressentimento e cairia na mesma lama, afinal inevitavelmente o destino de todos os amores era aquele chão remoído de tortuosas juras eternas e casamentos inférteis de ternura.

Suspirei fundo e continuei pelos caminhos onde todos sabiam que um destino tão certeiro quando a morte da matéria era o falecimento do amor.