"Existem Venenos Tão sutis que, para conhecer-lhes as propriedades, temos que nos expor ás doenças que causam."

Oscar Wild.

29 setembro 2010

Play




"Feche os olhos..."
E passivamente ele os fechou.
O mundo passava a sua volta, pessoas, carros, aviões, mas ele os mantinha fechados ao comando da voz dela.

"Vamos meu amor acorde"

Novamente, sistematicamente, ele seguiu as ordens dos suaves acordes, focalizou o olhar e tentou enxergar em meio de todo aquele mar de almas a dona da voz, inutilmente caminhou por todos os olhos que passavam por ele e nada, nem um único vislumbre dos olhos castanhos que ela carregava, nem uma única sombra de seus cabelos em outras íris, nada.
A cada novo olhar que ele visitava o seu se recusava a aceitar que lá nada havia, mais do que desgostosa sua alma se negava a receber a aceitação do nada que ele encontrava, afogava-se a cada falsa evidencia, se debruçava nos abismos da memória para salvar a pouca esperança que guiava a fragilidade de sua alma.
Desceu as escadas do metrô, sentou-se no plástico morto, sentiu uma pele morna ao invés, milhares de nadas ao seu redor, todos feitos de plástico, e o plástico feito de pele, a pele feita de nada, o nada que para ele era quase nada, um quase que por pouco não o deixava virar tudo.

"O que foi, não consegue dormir?"

Fechou novamente os olhos como quem finge que dorme, como se assim realizasse o desejo dela.
Foi capaz de ver seu sorriso, sorriu de volta entregando seu disfarce mal encenado, sentiu os ares de gargalhada aos pés de seu pescoço, a morna brisa da descoberta do falho teatro por amor que causou para fazê-la rir.

"Me abraça; Forte"

Seus braços começaram a se levantar para agarrar o ar a sua frente porem a chamada do metrô anunciava que ali era sua despedida da falsa pele que descansava tomando lugar dos assentos coloridos de plástico.
Levantou preguiçosamente as pálpebras descobrindo seu olhar triste, desesperado para poder descansar em outro, mais preguiçosamente ainda se levantou e deixou os pés de sempre o levarem pelos mesmos caminhos de sempre vendo sempre pessoas diferentes com diferentes risos e tonalidades, pessoas diferentes que para ele eram as mesmas de sempre.

"Eu te amo"

Seu coração parou; Parava toda vez que ouvia a junção das letras, silabas e palavras que formavam essa frase, toda vez que ela ressoava nos seus ouvidos, seu ventrículo direito recusava a se mover, o átrio esquerdo com muita insistência demonstrava mínimo movimento, por preguiça, ou talvez pelo gosto da sensação, mantinha o resto imóvel saboreando os últimos segundos das palavras, as ultimas cores que previam o começo da normalidade em si, o nada.
Andava pelo cinza, um cinza desbotado de rosa, um blasé de anis que lavava o céu agora mais cinza, mais carregado de noite, de escuridão cinzenta e apática.
Entrou no elevador apressado e se recostou à parede escorregadia e espelhada, seus cabelos brancos refletidos como prata, o paletó preto de sempre, os sapatos engraxados, as marcas da vida estampadas em cada célula de seu corpo, cada esquina da alma.
Apalpou os bolsos até os dedos encontrarem o metal frio das chaves, abriu a porta do velho apartamento escuro, encontrou lá o mesmo nada de sempre, o cheiro de nada que permanecia contra sua vontade, a presença de nada, que o maltratava quando a voz sumia levando consigo todo aquele tudo, em todos os cômodos, seu nada estampado por cima de tudo que ali já foi vivido, cobrindo até mesmo as fotos que vez por quando abaixava para que elas não o vissem chorar.

"Boa noite meu amor"

Jogou o corpo por cima do colchão de molas, permaneceu na mais pura inércia, em sua profunda contemplação do nada, em sua decadente rotina que lhe fazia companhia substituindo o espaço que foi deixado, substituindo eventualmente até mesmo o nada, uma genérica substituição de tudo que já ocupou aquele lugar.
O lugar ao seu lado na cama.

"Até amanhã"

-Até.

Tirou os fones de ouvido despedindo-se da voz por hoje, beijou o retrato que repousava em sua cabeceira com seus lábios secos pela idade, pelo cansaço, queria partir hoje com os sonhos refletidos nos olhos dela.

Finalmente dormiu, por hoje não mais fingiria agradar o nada que um dia fora tudo para ele.

Sonhou com pés, delicados, femininos e enrugados pela idade, sonhou com suas unhas, seus braços, orelhas e nariz.
Sonhou com os cabelos tingidos, as sobrancelhas finas, as rugas que cavavam seu rosto.
Sonhou com olhos embaçados, busto, lábios e nuca.
Sonhou com ela, muda e incompreensível com a voz roubada.
Sonhou vermelho e negro.

No dia seguinte acordou afoito com o sol, ainda vestido em seu paletó preto e com os sapatos já não tão brilhantes, pegou as rosas vermelhas de todos os dias na floricultura, escreveu o mesmo bilhete com o eventual “Eu te amo, sinto sua falta minha querida", fez o mesmo caminho de sempre, levado pelos mesmos pés de sempre, nos mesmos sapatos de sempre que hoje por descuido de seu cansaço não estavam apresentáveis como sempre, repousou o buquê na grama orvalhada e colocou os fones e apertou o play.


"Bom dia meu amor"

07 setembro 2010

Roupa Intima

Engraçado.

Estava sentada no trólebus, pra quem não sabe o que é um trólebus, é só imaginar um ônibus com fios, se você não sabe o que é um ônibus, ou você é um ET ou rico demais pra estar lendo esse texto... bom continuando, estava lá sentada e reparei como apesar de não ser, meu rosto passa a impressão de uma aparência simpática, até bondosa, claro, eu levanto quando algum velhinho entra e fica de pé ao meu lado, faço as ações de praxe que todo ser humano deveria fazer por um mínimo de consciência, mas não gosto de conversas, muito menos de pessoas.
Hoje enquanto ocupava a primeira cadeira do trólebus reparei que o motorista olhava muito para minha pessoa pelo retrovisor, sim pra você que não sabe o que é um trólebus/ ônibus e mesmo assim continuou lendo, eles têm retrovisores assim como os carros, ou como as naves espaciais deveriam ter, agora se nada disso faz sentido para você, imagine um jumento com um espelhinho, ou só imagine um espelhinho... isso é um retrovisor, e apos um tempo ele tirou os fones e começou a conversar comigo, sei lá, sempre respeitei aqueles avisos de "não converse com o motorista" mas aquele parecia não querer nem saber de tais avisos, não sei se por que o dia estava chuvoso, era feriado, ou se minha cara estava realmente muito feliz, refletindo tudo que eu estava sentindo, mas as pessoas, que eram na verdade estranhos uns para os outros estavam simpáticos e amigáveis principalmente comigo, até que é claro entrou uma velhinha e eu levantei e fui mais para o fundo.
Ai sim um pensamento engraçado me veio à mente, todos aqueles estranhos estranhamente amigáveis que estavam a minha volta, alguns muito entretidos com o próprio mundo, outros perdidos as margens de outros mundos que viam ou imaginavam em outros estranhos assim como eu, me viam normalmente, uma menina com o cabelo preso, jaqueta meio molhada de couro, jeans e um par de all star brancos nos pés, ta... Sem mentir... eles foram brancos um dia, hoje essa cor já não podia mais ser aplicada aquele cinza encardido que realmente cobria eles, mas será que eles imaginavam que por baixo da jaqueta e da camisa que eu vestia eu usava um corpete de renda preta? Ou será que eles imaginavam algo normal, bege talvez? Será que nenhum deles nem chegou a formatar o pensamento? Será que alguns chegaram a pensar como eu passei a noite, onde? Imaginei se todos os estranhos soubessem do tal corpete de renda, que agora esta para lavar apesar de ter ficado tão pouco tempo comigo, como eles passariam a me tratar, será que o motorista falaria comigo no mesmo tom? A velhinha a quem cedi meu lugar sorriria com a mesma inocência para mim? A moça que estava sentada atrás de mim com o filho no colo ainda olharia para mim com aquele olhar de quem sente falta da própria mocidade, se vendo refletida no meu sorriso, ou talvez em meus olhos...
E quantas como eu já não passaram por lá, vestidas normalmente, mas com seus corpetes e lingeries rendadas e sensuais por baixo daquelas roupas casuais, quantas já não esconderam os mesmos "segredos" abaixo da superfície de pano que cobria seus corpos?
Quantas haviam lá naquela hora.
E então criou-se o monstro, comecei a reparar em todos estranhos em seus mundos e em mundos alheiros e imaginar suas roupas de baixo, suas noites, vidas, comecei a criar diálogos com namorados e amantes secretos, aventuras e risos com amigos imaginários, comecei a recriar a vida de todos aqueles estranhos estranhamente reunidos no trólebus em um dia chuvoso de feriado.
Até que um lugar ficou vago e rapidamente joguei meu corpo no assento, a moça que estava ao meu lado era cega, sua bengala estava encostada na janela ao seu lado, mentalizei maldosamente "Ta explicado da onde veio a coragem de usar essa roupa”, deixei bem claro no começo do texto, não sou bondosa, nem simpática, mas depois de um tempo minha cabeça fundiu em um pensamento, se todas aquelas pessoas pudessem ver o corpete de renda preta aquela moça seria a única a me tratar sem diferença nenhuma do que me trataria antes, não por uma bondade extrema ou por que ela seria mais evoluída espiritualmente do que os outros, mas simplesmente por que ela não iria ver, e o mesmo motivo que levou ela a colocar aquele gorro horrível seria também responsável por ela não me julgar uma vadia pela minha roupa de baixo, ela desceu após alguns pontos e eu ofereci ajuda para ela desembarcar, ela agradeceu com um sorriso e saiu.
A única pessoa que não me tratou bem ou sorriu pela aparência suave que meu rosto carregava e a única que não mudaria nada se eu simplesmente tirasse a roupa e mostrasse o corpete de renda.

Deus... O que um lingerie não pode nos levar a pensar em uma terça chuvosa às dez da manhã.