"Existem Venenos Tão sutis que, para conhecer-lhes as propriedades, temos que nos expor ás doenças que causam."

Oscar Wild.

07 setembro 2010

Roupa Intima

Engraçado.

Estava sentada no trólebus, pra quem não sabe o que é um trólebus, é só imaginar um ônibus com fios, se você não sabe o que é um ônibus, ou você é um ET ou rico demais pra estar lendo esse texto... bom continuando, estava lá sentada e reparei como apesar de não ser, meu rosto passa a impressão de uma aparência simpática, até bondosa, claro, eu levanto quando algum velhinho entra e fica de pé ao meu lado, faço as ações de praxe que todo ser humano deveria fazer por um mínimo de consciência, mas não gosto de conversas, muito menos de pessoas.
Hoje enquanto ocupava a primeira cadeira do trólebus reparei que o motorista olhava muito para minha pessoa pelo retrovisor, sim pra você que não sabe o que é um trólebus/ ônibus e mesmo assim continuou lendo, eles têm retrovisores assim como os carros, ou como as naves espaciais deveriam ter, agora se nada disso faz sentido para você, imagine um jumento com um espelhinho, ou só imagine um espelhinho... isso é um retrovisor, e apos um tempo ele tirou os fones e começou a conversar comigo, sei lá, sempre respeitei aqueles avisos de "não converse com o motorista" mas aquele parecia não querer nem saber de tais avisos, não sei se por que o dia estava chuvoso, era feriado, ou se minha cara estava realmente muito feliz, refletindo tudo que eu estava sentindo, mas as pessoas, que eram na verdade estranhos uns para os outros estavam simpáticos e amigáveis principalmente comigo, até que é claro entrou uma velhinha e eu levantei e fui mais para o fundo.
Ai sim um pensamento engraçado me veio à mente, todos aqueles estranhos estranhamente amigáveis que estavam a minha volta, alguns muito entretidos com o próprio mundo, outros perdidos as margens de outros mundos que viam ou imaginavam em outros estranhos assim como eu, me viam normalmente, uma menina com o cabelo preso, jaqueta meio molhada de couro, jeans e um par de all star brancos nos pés, ta... Sem mentir... eles foram brancos um dia, hoje essa cor já não podia mais ser aplicada aquele cinza encardido que realmente cobria eles, mas será que eles imaginavam que por baixo da jaqueta e da camisa que eu vestia eu usava um corpete de renda preta? Ou será que eles imaginavam algo normal, bege talvez? Será que nenhum deles nem chegou a formatar o pensamento? Será que alguns chegaram a pensar como eu passei a noite, onde? Imaginei se todos os estranhos soubessem do tal corpete de renda, que agora esta para lavar apesar de ter ficado tão pouco tempo comigo, como eles passariam a me tratar, será que o motorista falaria comigo no mesmo tom? A velhinha a quem cedi meu lugar sorriria com a mesma inocência para mim? A moça que estava sentada atrás de mim com o filho no colo ainda olharia para mim com aquele olhar de quem sente falta da própria mocidade, se vendo refletida no meu sorriso, ou talvez em meus olhos...
E quantas como eu já não passaram por lá, vestidas normalmente, mas com seus corpetes e lingeries rendadas e sensuais por baixo daquelas roupas casuais, quantas já não esconderam os mesmos "segredos" abaixo da superfície de pano que cobria seus corpos?
Quantas haviam lá naquela hora.
E então criou-se o monstro, comecei a reparar em todos estranhos em seus mundos e em mundos alheiros e imaginar suas roupas de baixo, suas noites, vidas, comecei a criar diálogos com namorados e amantes secretos, aventuras e risos com amigos imaginários, comecei a recriar a vida de todos aqueles estranhos estranhamente reunidos no trólebus em um dia chuvoso de feriado.
Até que um lugar ficou vago e rapidamente joguei meu corpo no assento, a moça que estava ao meu lado era cega, sua bengala estava encostada na janela ao seu lado, mentalizei maldosamente "Ta explicado da onde veio a coragem de usar essa roupa”, deixei bem claro no começo do texto, não sou bondosa, nem simpática, mas depois de um tempo minha cabeça fundiu em um pensamento, se todas aquelas pessoas pudessem ver o corpete de renda preta aquela moça seria a única a me tratar sem diferença nenhuma do que me trataria antes, não por uma bondade extrema ou por que ela seria mais evoluída espiritualmente do que os outros, mas simplesmente por que ela não iria ver, e o mesmo motivo que levou ela a colocar aquele gorro horrível seria também responsável por ela não me julgar uma vadia pela minha roupa de baixo, ela desceu após alguns pontos e eu ofereci ajuda para ela desembarcar, ela agradeceu com um sorriso e saiu.
A única pessoa que não me tratou bem ou sorriu pela aparência suave que meu rosto carregava e a única que não mudaria nada se eu simplesmente tirasse a roupa e mostrasse o corpete de renda.

Deus... O que um lingerie não pode nos levar a pensar em uma terça chuvosa às dez da manhã.